*Murilo Félix
Para situar, com base no ordenamento jurídico nacional, o projeto de
emenda constitucional (PEC) idealizado por mim e Dimitri Sean para instituição do
Estatuto de Proteção Animal, compilamos iniciativas internacionais e a legislação
pertinente em nosso país. Depois da aprovação do Estatuto, cuja PEC tramita no
Congresso Nacional, teremos consolidado no Brasil um ramo do Direito dos
Animais, como o Penal, o Civil, o do Consumidor, distinto do Direito Ambiental
em que hoje genericamente se inclui.
A evolução da legislação consolida o entendimento progressista de
que os animais não são coisas, mas seres sencientes aos quais a Humanidade se deve
obrigar a proporcionar cuidado e respeito.
História da proteção dos animais – I
Segundo a tradição das Sagradas Escrituras, o primeiro protetor dos
animais foi o próprio Criador. Deus mandou Noé construir uma arca para abrigar
um casal de cada espécie de animais existentes na Terra e assim poupá-los do dilúvio
universal que duraria 40 dias e 40 noites como forma de expiação dos pecados do
homem.
Consta do livro do Gênesis (6:9):
“Disse também Deus a Noé e a seus filhos:
Eis que eu vou estabelecer a minha aliança convosco e com a vossa
posteridade depois de vós; e também com todo o animal vivente que está
convosco: com as aves, com o gado e com todo o animal da terra, desde todos os
que saem da arca até todo o animal da Terra.”
Passada a quarentena, a arca encalhou no monte Ararat, localizado onde hoje
se situa a Turquia, e a Humanidade renasceu acompanhada de todos os seres vivos
que haviam habitado a Terra por ocasião da Criação.
A Ciência confirma que houve dilúvios, mas regionais, como consequência
do degelo das calotas polares na última glaciação, ocorrida há 12 mil anos –-
uma quantidade tão grande de água a cobrir o planeta que não possibilitaria a
sobrevivência de nenhuma espécie.
História da proteção dos animais – II
Um dos primeiros paladinos da causa animal foi São Francisco de Assis,
em pleno século XII, ou seja, na Idade Média, quando se acha – erradamente –
que tudo era atrasado e bruto. Franciso tratou a fauna do mundo, em especial os
animais já domesticados, como criaturas de Deus que mereciam respeito e
carinho.
“Todas as coisas da criação são filhos do Pai e irmãos do homem... Deus
quer que ajudemos aos animais, se necessitam de ajuda. Toda criatura em
desgraça tem o mesmo direito a ser protegida”, dizia o santo católico, que até
pregava para os bichos, e montou o primeiro presépio, com animais vivos, por
ocasião do Natal. Diz a lenda que
amansava os ferozes que se aproximavam e conversava com os mansos que recebiam
sua bênção.
A postura de Francisco traçou uma rota de proteção da fauna que que
hoje é seguida por todas as religiões que têm o Cristianismo como matriz – e
ele ficou como Padroeiro dos Animais.
História da proteção dos animais – III
A primeira legislação de proteção dos animais foi inscrita no Corpo de
Liberdades de Massachusetts, que estabeleceu direitos e deveres dos cidadãos
desse que seria um estado americano após a independência da Inglaterra. Em
1641, o código fixou no artigo 92 que ninguém poderia “exercer qualquer tirania
ou crueldade em relação a qualquer criatura bruta que geralmente é mantida para
uso do homem."
A lei pioneira dedicada exclusivamente à proteção dos animais foi
aprovada pelo Parlamento da Inglaterra, em 1822. A British Cruelty to Animal
Act (Lei Britânica contra maus tratos de animais) ficou mundialmente conhecida
quando, ao denunciar um vendedor de frutas que maltratava seu burro, o autor da
lei, Richard Martin, fez questão de levar o muar ao parlamento para comprovar os
maus tratos.
Um dos resultados benfazejos da legislação foi a criação em 1824 da
Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA), que se espalhou
pelos países da Comunidade Britânica, e a partir dela multiplicaram-se pelo
mundo as uniões internacionais protetoras dos animais. A UIPA do Brasil foi
instituída já em 1895 (é a nossa ONG mais antiga...), por inspiração do suíço
Henri Ruegger, que, comovido com maus tratos aos cavalos que puxavam carroças
nas ruas, indignou-se ao saber que não havia a quem fazer uma denúncia.
Desde então, a UIPA luta por leis que proíbam os homens de maltratar os
seus amigos queridos do reino animal.
História da proteção dos animais – IV
O Brasil tem desde 1924 legislação para tratar especificamente do
amparo aos animais. Naquele ano, com data de 10 de setembro, foi promulgado o
decreto n.º 16.590, do presidente Artur Bernardes, que regulamentava as casas
de diversões públicas. Pioneiramente, proibia corridas de touros, rinhas de
galos e de passarinhos (em especial, canários) e demais ações que causassem
sofrimento aos bichos. A seguir, o decreto 24.645, de 10 de julho de 1934, já
do presidente Getúlio Vargas, dispôs que “Todos os animais existentes no País
são tutelados do Estado”, definiu mais de três dezenas de maus tratos contra
eles, puníveis com penas de multa de 20 a 50 mil-réis e “prisão celular” de 2 a
45 dias, “sem prejuízo da ação civil que possa caber.”
As transgressões foram ratificadas pelo decreto-lei n.º 3.688, de 3 de
outubro de 1941, que instituiu a Lei das Contravenções Penais. Ainda em vigor,
o artigo 64 já estabelece:
“Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena –
prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil-réis.
§ 1.º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou
científicos, realiza em lugar público ou exposto ao público, experiência
dolorosa ou cruel em animal vivo.
§ 2.º Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a
trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.“
História da proteção dos animais – V
Uma lei revolucionária foi a de n.º 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que
equiparou o Brasil a nações exemplarmente preservacionistas do mundo ao dispor
sobre a proteção da fauna. A cultura destrutiva da vida animal, praticada sobeja
e impunemente ao longo de 500 anos, foi combatida pela
reestatização dos animais e criminalização da caça, comércio e
cativeiro. O artigo 1.º é taxativo:
“Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu
desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a
fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são
propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição,
destruição, caça ou apanha.”
As penas iniciais iam de três meses a um ano de prisão simples ou multa
de uma a dez vezes o salário-mínimo mensal do lugar e da data da infração, ou
ambas as penas cumulativamente, depois aumentadas, em alguns casos, pela lei
n.º 7.653; de 12 de fevereiro de 1988, para reclusão de dois a cinco anos.
A multa pela morte de indivíduo de espécie constante de listas oficiais
de fauna brasileira ameaçada de extinção, inclusive da Convenção de Comércio
Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES),
é de R$ 5.000,00.
História da proteção dos animais – VI
Em 27 de janeiro de 1978, os organismos do reino Animalia
foram agraciados com um documento da mais elevada importância, a Declaração
Universal dos Direitos dos Animais, proclamado pela Unesco – a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Em um conjunto de 14
artigos, sustentados pelo preâmbulo de que “o respeito dos homens pelos animais
está ligado ao respeito dos homens pelo seu semelhante”, o documento dita já
nos artigos iniciais:
Art. 1º - Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos
direitos à existência.
Art. 2º 1. Todo o animal tem o direito a ser respeitado. 2. O homem,
como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los
violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos
animais.
3. Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do
homem.
Art. 3º 1. Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos
cruéis. 2. Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto
instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia.”
O artigo 6.º diz que “Todo o animal que o homem escolheu para seu
companheiro tem direito a uma duração de vida conforme a sua longevidade
natural. 2. O abandono de um animal é um ato cruel e degradante.”
História da proteção dos animais – VII
O coroamento da proteção legal aos animais no Brasil se deu em 1988,
com a inscrição no artigo 225, § 1.º, inciso VII da Constituição da República
da obrigação de o Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma
da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a
extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
Foi a primeira Constituição do Brasil a incluir, em seus dispositivos
norteadores da legislação ordinária, a proteção do meio ambiente, e com ele a
dos aninais, sem distinção entre domésticos e silvestres.
Ao vedar as práticas que submetam os animais à crueldade, a
Constituição sinalizou um cuidado ético com todos os seres que habitam o
território nacional.
História da proteção dos animais – VIII
A lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 regulamentou o artigo 225
da Constituição e dispôs sobre as sanções penais e administrativas derivadas de
condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Conhecida como Lei dos Crimes
Ambientais, ficou como uma das legislações mais detalhadas e rigorosas do mundo
sobre o assunto. Define como crime, em seu artigo 32,
“Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais
silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1.º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou
cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando
existirem recursos alternativos.
A lei n.º 14.064, de 29 de setembro de 2020, alterou esse artigo para
tornar as penas mais severas, e incluiu como § 1.º A: “Quando se tratar de cão
ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de
reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.”
§ 2.º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do
animal.”
História da proteção dos animais – IX
A lei n.° 11.794, de 2008, criou o Conselho Nacional de Controle de
Experimentação Animal (Concea), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia,
para disciplinar o uso de animais em atividades de ensino e pesquisa
científica, de forma humanitária, sobretudo em centros de criação, biotérios e
laboratórios de experimentação animal, visando a evitar práticas dolorosas e
cruéis.
É um desdobramento regulatório do artigo 32 da lei n.º 9.605/1998, que
pune ato abusivo e maus tratos a animais silvestres, domésticos ou
domesticados, nativos ou exóticos.
As cobaias devem ser adequadamente sedadas, e todo procedimento,
gravado para conferência ou evitar a repetição de erros.
História da proteção dos animais – X
Existem ainda no ordenamento jurídico outros decretos e leis voltados à
proteção animal, como o decreto-lei n° 221, de 28 de fevereiro de 1967 (Código
de Pesca), lei n.º 6.638, de 8 de maio de 1979 (Lei da Vivissecção), lei n.º
7.173, de 14 de dezembro de 1983 (que inclui o tratamento dos animais em jardins
zoológicos) e a lei n.º 7.643, de 18 de dezembro de 1987, que proíbe a pesca de
cetáceos nas águas jurisdicionais do Brasil.
Alguns estados, e mesmo municípios, também editaram suas próprias leis.
O Rio Grande do Sul foi pioneiro na criação de um Código Estadual de Proteção
aos Animais, instituído pela lei Estadual n.º 11.915 em 21 de maio de 2003.
O estado de São Paulo tem desde 2005 a lei de n.º 11.977, que instituiu
o Código de Proteção dos Animais, com normas para a preservação da fauna
silvestre e para proteção dos animais domésticos. A esses, a administração
pública deve oferecer o controle de zoonoses, por vacinação, e de reprodução de
cães e gatos.
A lei n.º 17.497, de 1921, instituiu o Programa de Proteção e Bem-Estar
dos Animais Domésticos, criando o Registro Único de Tutor, para identificação
do dono do animal, forma de responsabilizá-lo em caso de maus tratos.
Já a lei n.º Lei 17.389, também de 2021, proíbe soltar fogos de
artifício com estampido capaz de assustar os animais.
São Paulo já dispõe de uma Delegacia Eletrônica de Proteção Animal, que
em 2021 recebeu 17. 962 denúncias de maus tratos. Santa Catarina também tem a sua, e outros
estados, a exemplo de Espírito Santo, Goiás, Paraná e Rio de Janeiro contam com
projetos semelhantes em tramitação nas Assembleias Legislativas.
*Deputado Estadual