terça-feira, 23 de agosto de 2022

EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DOS ANIMAIS

 *Murilo Félix

 

Para situar, com base no ordenamento jurídico nacional, o projeto de emenda constitucional (PEC) idealizado por mim e Dimitri Sean para instituição do Estatuto de Proteção Animal, compilamos iniciativas internacionais e a legislação pertinente em nosso país. Depois da aprovação do Estatuto, cuja PEC tramita no Congresso Nacional, teremos consolidado no Brasil um ramo do Direito dos Animais, como o Penal, o Civil, o do Consumidor, distinto do Direito Ambiental em que hoje genericamente se inclui. 

A evolução da legislação consolida o entendimento progressista de que os animais não são coisas, mas seres sencientes aos quais a Humanidade se deve obrigar a proporcionar cuidado e respeito.

 

 

História da proteção dos animais – I

 

Segundo a tradição das Sagradas Escrituras, o primeiro protetor dos animais foi o próprio Criador. Deus mandou Noé construir uma arca para abrigar um casal de cada espécie de animais existentes na Terra e assim poupá-los do dilúvio universal que duraria 40 dias e 40 noites como forma de expiação dos pecados do homem.

Consta do livro do Gênesis (6:9):

“Disse também Deus a Noé e a seus filhos:

Eis que eu vou estabelecer a minha aliança convosco e com a vossa posteridade depois de vós; e também com todo o animal vivente que está convosco: com as aves, com o gado e com todo o animal da terra, desde todos os que saem da arca até todo o animal da Terra.”

Passada a quarentena, a arca encalhou no monte Ararat, localizado onde hoje se situa a Turquia, e a Humanidade renasceu acompanhada de todos os seres vivos que haviam habitado a Terra por ocasião da Criação.

A Ciência confirma que houve dilúvios, mas regionais, como consequência do degelo das calotas polares na última glaciação, ocorrida há 12 mil anos –- uma quantidade tão grande de água a cobrir o planeta que não possibilitaria a sobrevivência de nenhuma espécie.

 

História da proteção dos animais – II

 

Um dos primeiros paladinos da causa animal foi São Francisco de Assis, em pleno século XII, ou seja, na Idade Média, quando se acha – erradamente – que tudo era atrasado e bruto. Franciso tratou a fauna do mundo, em especial os animais já domesticados, como criaturas de Deus que mereciam respeito e carinho.

“Todas as coisas da criação são filhos do Pai e irmãos do homem... Deus quer que ajudemos aos animais, se necessitam de ajuda. Toda criatura em desgraça tem o mesmo direito a ser protegida”, dizia o santo católico, que até pregava para os bichos, e montou o primeiro presépio, com animais vivos, por ocasião do Natal.  Diz a lenda que amansava os ferozes que se aproximavam e conversava com os mansos que recebiam sua bênção.

A postura de Francisco traçou uma rota de proteção da fauna que que hoje é seguida por todas as religiões que têm o Cristianismo como matriz – e ele ficou como Padroeiro dos Animais.

 

História da proteção dos animais – III

 

A primeira legislação de proteção dos animais foi inscrita no Corpo de Liberdades de Massachusetts, que estabeleceu direitos e deveres dos cidadãos desse que seria um estado americano após a independência da Inglaterra. Em 1641, o código fixou no artigo 92 que ninguém poderia “exercer qualquer tirania ou crueldade em relação a qualquer criatura bruta que geralmente é mantida para uso do homem."

A lei pioneira dedicada exclusivamente à proteção dos animais foi aprovada pelo Parlamento da Inglaterra, em 1822. A British Cruelty to Animal Act (Lei Britânica contra maus tratos de animais) ficou mundialmente conhecida quando, ao denunciar um vendedor de frutas que maltratava seu burro, o autor da lei, Richard Martin, fez questão de levar o muar ao parlamento para comprovar os maus tratos.  

Um dos resultados benfazejos da legislação foi a criação em 1824 da Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA), que se espalhou pelos países da Comunidade Britânica, e a partir dela multiplicaram-se pelo mundo as uniões internacionais protetoras dos animais. A UIPA do Brasil foi instituída já em 1895 (é a nossa ONG mais antiga...), por inspiração do suíço Henri Ruegger, que, comovido com maus tratos aos cavalos que puxavam carroças nas ruas, indignou-se ao saber que não havia a quem fazer uma denúncia.

Desde então, a UIPA luta por leis que proíbam os homens de maltratar os seus amigos queridos do reino animal.

  

História da proteção dos animais – IV

 

O Brasil tem desde 1924 legislação para tratar especificamente do amparo aos animais. Naquele ano, com data de 10 de setembro, foi promulgado o decreto n.º 16.590, do presidente Artur Bernardes, que regulamentava as casas de diversões públicas. Pioneiramente, proibia corridas de touros, rinhas de galos e de passarinhos (em especial, canários) e demais ações que causassem sofrimento aos bichos. A seguir, o decreto 24.645, de 10 de julho de 1934, já do presidente Getúlio Vargas, dispôs que “Todos os animais existentes no País são tutelados do Estado”, definiu mais de três dezenas de maus tratos contra eles, puníveis com penas de multa de 20 a 50 mil-réis e “prisão celular” de 2 a 45 dias, “sem prejuízo da ação civil que possa caber.”

As transgressões foram ratificadas pelo decreto-lei n.º 3.688, de 3 de outubro de 1941, que instituiu a Lei das Contravenções Penais. Ainda em vigor, o artigo 64 já estabelece:

“Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil-réis.

§ 1.º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo.

§ 2.º Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.“

 

História da proteção dos animais – V

 

Uma lei revolucionária foi a de n.º 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que equiparou o Brasil a nações exemplarmente preservacionistas do mundo ao dispor sobre a proteção da fauna. A cultura destrutiva da vida animal, praticada sobeja e impunemente ao longo de 500 anos, foi combatida pela reestatização dos animais e criminalização da caça, comércio e cativeiro. O artigo 1.º é taxativo:

“Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.”

As penas iniciais iam de três meses a um ano de prisão simples ou multa de uma a dez vezes o salário-mínimo mensal do lugar e da data da infração, ou ambas as penas cumulativamente, depois aumentadas, em alguns casos, pela lei n.º 7.653; de 12 de fevereiro de 1988, para reclusão de dois a cinco anos.

A multa pela morte de indivíduo de espécie constante de listas oficiais de fauna brasileira ameaçada de extinção, inclusive da Convenção de Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), é de R$ 5.000,00.

 

 

História da proteção dos animais – VI

 

 Em 27 de janeiro de 1978, os organismos do reino Animalia foram agraciados com um documento da mais elevada importância, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamado pela Unesco – a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Em um conjunto de 14 artigos, sustentados pelo preâmbulo de que “o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos homens pelo seu semelhante”, o documento dita já nos artigos iniciais:

Art. 1º - Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência.

Art. 2º 1. Todo o animal tem o direito a ser respeitado. 2. O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos animais.

3. Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem.

Art. 3º 1. Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. 2. Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia.”

O artigo 6.º diz que “Todo o animal que o homem escolheu para seu companheiro tem direito a uma duração de vida conforme a sua longevidade natural. 2. O abandono de um animal é um ato cruel e degradante.”

 

História da proteção dos animais – VII

 

O coroamento da proteção legal aos animais no Brasil se deu em 1988, com a inscrição no artigo 225, § 1.º, inciso VII da Constituição da República da obrigação de o Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”

Foi a primeira Constituição do Brasil a incluir, em seus dispositivos norteadores da legislação ordinária, a proteção do meio ambiente, e com ele a dos aninais, sem distinção entre domésticos e silvestres.

Ao vedar as práticas que submetam os animais à crueldade, a Constituição sinalizou um cuidado ético com todos os seres que habitam o território nacional.

 

História da proteção dos animais – VIII

 

A lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 regulamentou o artigo 225 da Constituição e dispôs sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Conhecida como Lei dos Crimes Ambientais, ficou como uma das legislações mais detalhadas e rigorosas do mundo sobre o assunto. Define como crime, em seu artigo 32,

“Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 1.º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.      

A lei n.º 14.064, de 29 de setembro de 2020, alterou esse artigo para tornar as penas mais severas, e incluiu como § 1.º A: “Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.”

§ 2.º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.”

 

História da proteção dos animais – IX

 

A lei n.° 11.794, de 2008, criou o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, para disciplinar o uso de animais em atividades de ensino e pesquisa científica, de forma humanitária, sobretudo em centros de criação, biotérios e laboratórios de experimentação animal, visando a evitar práticas dolorosas e cruéis.

É um desdobramento regulatório do artigo 32 da lei n.º 9.605/1998, que pune ato abusivo e maus tratos a animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.

As cobaias devem ser adequadamente sedadas, e todo procedimento, gravado para conferência ou evitar a repetição de erros.

 

História da proteção dos animais – X

 

Existem ainda no ordenamento jurídico outros decretos e leis voltados à proteção animal, como o decreto-lei n° 221, de 28 de fevereiro de 1967 (Código de Pesca), lei n.º 6.638, de 8 de maio de 1979 (Lei da Vivissecção), lei n.º 7.173, de 14 de dezembro de 1983 (que inclui o tratamento dos animais em jardins zoológicos) e a lei n.º 7.643, de 18 de dezembro de 1987, que proíbe a pesca de cetáceos nas águas jurisdicionais do Brasil.

Alguns estados, e mesmo municípios, também editaram suas próprias leis. O Rio Grande do Sul foi pioneiro na criação de um Código Estadual de Proteção aos Animais, instituído pela lei Estadual n.º 11.915 em 21 de maio de 2003.

O estado de São Paulo tem desde 2005 a lei de n.º 11.977, que instituiu o Código de Proteção dos Animais, com normas para a preservação da fauna silvestre e para proteção dos animais domésticos. A esses, a administração pública deve oferecer o controle de zoonoses, por vacinação, e de reprodução de cães e gatos.

A lei n.º 17.497, de 1921, instituiu o Programa de Proteção e Bem-Estar dos Animais Domésticos, criando o Registro Único de Tutor, para identificação do dono do animal, forma de responsabilizá-lo em caso de maus tratos.

Já a lei n.º Lei 17.389, também de 2021, proíbe soltar fogos de artifício com estampido capaz de assustar os animais.

São Paulo já dispõe de uma Delegacia Eletrônica de Proteção Animal, que em 2021 recebeu 17. 962 denúncias de maus tratos.  Santa Catarina também tem a sua, e outros estados, a exemplo de Espírito Santo, Goiás, Paraná e Rio de Janeiro contam com projetos semelhantes em tramitação nas Assembleias Legislativas.

 

*Deputado Estadual