quinta-feira, 15 de setembro de 2022

BRASIL-PORTUGAL: AMIGOS, AMIGOS, NEGÓCIOS À PARTE

* Murilo Félix

É salutar que Portugal se associe às comemorações do bicentenário da Independência do Brasil, a ponto de mandar seu presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa para os festejos do 7 de Setembro em Brasília. Já em 1972, por ocasião do sesquicentenário, foi pródigo em despachar os restos mortais de dom Pedro I e de dona Leopoldina, devidamente alojados no museu que celebra o Grito do Ipiranga em São Paulo, assim como agora emprestou para exibição o coração do príncipe que proclamou a autonomia brasileira.
Em artigo na Folha de S. Paulo (8/7), o primeiro-ministro Antônio Costa ressaltou os laços sentimentais que unem os dois países: “Ao mesmo tempo, houve também a noção de que a relação bilateral entre Portugal e o Brasil, que é umbilical, deve ser constantemente atualizada para que faça sentido para ambos os lados e sirva a interesses mútuos. Ora, esta efeméride permite-nos falar do passado e alicerçar as bases futuras de forma descomplexada.”
A separação não foi, no entanto, nem amigável nem pacífica nem barata. Em 1822, houve resistência dos portugueses, travando-se uma guerra sangrenta. A seguir, sobreveio outra batalha, a do reconhecimento do novo império. Lisboa recusou-se a discutir o assunto durante três anos, até que em 1825 dom João VI nomeou o hábil diplomata inglês Charles Stuart para vir ao Brasil negociar o reconhecimento que também interessava à Inglaterra.
De imediato, dom Pedro antipatizou com Stuart, mas formou uma comissão de negociadores integrada pelo ministro Luís José de Carvalho e Melo e os conselheiros de Estado Francisco Vilela Barbosa e o barão de Santo Amaro, mas informalmente dela participavam o marquês de Barbacena e a imperatriz Leopoldina atuando como tradutora, e, nos bastidores, a amante marquesa de Santos, no seu papel de influenciadora do imperador. Chamou atenção, aliás, que antes de se encontrar com a imperatriz, Stuart visitou a marquesa e, ao final das negociações, afirmou que coube “à influência da Senhora Domitila de Castro a remoção de um obstáculo que teria feito malograr toda a negociação.”
Domitila convenceu dom Pedro a aceitar um parecer de Barbacena que contrariava o que outros negociadores brasileiros haviam escrito em seu rascunho do tratado, dando conta de que ele se tornara imperador "por graça de Deus e unânime aclamação dos povos". Stuart achava que tal menção à participação popular não agradava a Portugal, e ao final ficou a redação "segundo a Constituição do Estado”.
Dom João Vi fez questão de inscrever no tratado que concedera "de sua livre vontade, a soberania do dito império [do Brasil] ao mesmo seu filho, e legítimos sucessores, e tomando somente, e reservando para a sua pessoa o mesmo título" – ou seja, não fora uma iniciativa nacionalista seguida de uma guerra clássica de emancipação., omitindo-se que dom Pedro nem quis tomar conhecimento de várias propostas do pai para que houvesse umas reunião das duas coroas e ele administrasse o Brasil com alguma autonomia.
Tamanho atentado aos fatos seria desprezível se comparado a outras cláusulas mais abusivas, a começar de uma indenização de dois milhões de libras esterlinas disfarçada na forma de pagamento de um empréstimo que Portugal devia à Inglaterra. O embaixador Stuart, aliás, apesar de nomeado por dom João, fora indicado por aquele país para defender os interesses ingleses, o que resultou em condições muito vantajosas para Londres.
Os produtos ingleses, que já constituíam os principais itens do comércio exterior do Brasil, pagariam uma alíquota de importação de apenas 15%, enquanto os dos demais países seriam taxados em 25%. Não menos importante foi a imposição de o Brasil abolir o tráfico negreiro dentro de quatro anos – medida que só seria efetivada muito tempo depois. Dom Pedro tinha escravos cativos em suas propriedades, mas era a favor da abolição da escravatura, e certamente assinou de bom grado essa proposta, mas ela lhe custaria a oposição da elite de comerciantes e proprietários que baseavam a estrutura econômica do país no trabalho dos negros cativos.
Se outros países, como Argentina, França e Estados Unidos já haviam reconhecido a nossa independência, o tratado com Portugal (e a Inglaterra...) foi essencial para que o Brasil ingressasse soberano no concerto das nações.

*Deputado Estadual